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18 setembro 2024

Capitulo 10 - Tudo e nada, a concepção da loucura frenética

 


 

"A única diferença entre um louco e eu é que eu não sou louco."

Salvador Dali

 

   Como em um sonho me vi caindo infinitamente, durante a queda infinita, não senti nada, não pensei em nada, apenas cai como um corpo sem alma naquele vazio negro imensurável, um preto tão solido que era como se meus olhos, mesmo abertos, estivessem fechados, não ouvia nada, nem se quer o som do vento, apenas aquela sensação de queda; não havia ruido, não havia mais nada ali além de uma proeminência esquálida de uma infundida grande melancolia lúgubre que tomava meu coração e minha mente, quase como uma doença terminal aos olhos de um pai ao filho. Era sem sombra de dúvidas, um sentimento de catarse, uma tristeza grande que me consumia, senti-a a todo instante calafrios que percorriam meu amago, sentia-me deprimido e minha única razão ali era me espatifar no chão com tamanha força que não me fizesse sentir dor e me aliviasse daquele sentimento horrível que eu sentira naquela hora.

   A voz, eu me lembro dela; me chamava e dizia coisas sobre mim que nem mesmo eu sabia, senti-me louco, pois a voz ecoava em um local onde não havia eco, era algo inusitado, tão impossível de sancionar e significar quanto tentar explicar a um fazendeiro a proeminência de um fogo-fátuo. Vi-me enlouquecendo de vez, chamei aquela queda de “O poço infinito”, vi-me preso em todos meus passado, de diferentes vidas, vi tudo; começo, meio e fim. E no fim, nada parecia fazer sentido, afinal, tudo acabou se tornando uma coisa retilínea, meu passado, presente e futuro se tornaram uma coisa só, como um rolo de filme; observei-me atravessando o vale das dimensões, observei algo curioso, algo que me arrepiou a espinha tão profundamente que me fez cair em uma loucura tão frenética. Presenciei a quarta dimensão de forma casual, vi o tempo como algo inerte e inerente a tudo, algo como, para os humanos tolos agora, ver um simplório animal andando na rua, sim, para mim naquele momento o tempo era algo tão singelo quanto isso para vós. Foi então que aconteceu, eu finalmente estava caindo rumo a ela, a quinta dimensão e lá eu realmente entendi, nada foi acaso, tudo foi plenamente arquitetado pelo arquiteto mais perfeito que existe, aquele que já estava aqui antes de tudo; caindo até o preto absoluto, o centro do Escuro, me vi frente a frente com todas as minhas realidades, vi todas as versões de mim mesmo, a vós lhes digo, que o que eu vira naquele momento me espantou muito, pela primeira vez senti-me assustado e com medo, tal qual uma criança ficaria ao ver um urso na floresta. Quando olhei as diferentes dimensões eu não vi absolutamente nada, era como se só existisse uma versão minha dentre todos os possíveis multiversos e foi ai que eu vi ele, Magnus, ao observar tudo e nada ao mesmo tempo, em uma entropia paracausal tamanha que um simples humano ao ver tamanho ser incomensurável, simplesmente morreria e sua existência seria apagada e somada ao Escuro.

   Eu vi a face de Magnus, vi aquele ser inefável e transcendental e vos digo uma coisa, é impossível eu mensurar a vós sua aparência, afinal, é diferente de tudo que já vi, sinto que meus olhos enxergam coisas além do espectro real, vi cores que jamais vi em minha vida inteira, observei fenômenos pequenos e imensuráveis como o Big-Bang se tornarem apenas pequenos grãos de areia em um deserto infinito; lhes digo que há muito mais do que a incumbência da racionalidade e do real na figura de Magnus. Caindo infinitamente eu então notei, que na verdade aquilo era o chão e cair ali era de fato algo metafisico, a sensação então se tornou lucida a mim e eu finalmente compreendi os fundamentos daquele lugar, finalmente ao ver Magnus eu compreendi o que era o Escuro; peguei-me pesando algo “Se nossos olhos, dão a nós a concepção de realidade visível e nosso corpo, espaço e física, dão a nós a concepção da realidade material, se a mente nos dá a conceção da realidade cognitiva e a religião dos dá a concepção do que espiritual, então é isso...

 

O Escuro nos dá a conceção da Hiperdimensionalidade Ultraetérica.

 

   Ao ver Magnus eu finalmente entendi tudo, a entropia de sua realidade e o que de fato era o Escuro; ele então me disse: “Filius prodigus domum redit; faciam ut memineris quis sis...” ¹. Juro-lhes de pé junto, que nunca entendi de fato latim; mas o que Magnus disse naquele dia eu solenemente lhes digo que eu assimilei, entendi logo no fim de sua sentença, afinal, meu destino ali já era traçado e por esse motivo eu compreendi por que dentre todas as realidade que vi, somente eu como eu, existia em uma somente.

   Ele se aproximou de mim e tomou uma forma humana; nunca havia visto algo daquele jeito, a nostalgia era tão proeminente quanto o próprio medo que eu senti, ao se aproximar um pouco eu me recordo das palavras que disse a ele, tampando os olhos com as mãos eu disse “Não quero ver, muito menos sentir, me mate por favor!”. Eu implorei a ele, mas de nada adiantou, pois em resposta, Magnus me disse “Itaque audi...”. Senhores, lhes digo algo, o som que eu ouvi me deu uma sensação lúdica tão confortavelmente frenética e melancólica que senti pela primeira vez, todos meus sentimentos aflorando de uma vez só, pensava naquele momento que de fato, aquela era a hora da minha morte. A sinfonia da loucura proeminente reverberava em meus ouvidos me causando um irreprimível horror que consumia meu amago e minha própria alma de tal modo que me senti despersonificado definitivamente após aquele dia.

Digo-lhes agora, mais do que nunca, que naquele dia fatídico eu por fim, fiquei louco!

 

¹ - Em latim: O filho prodigo a casa retorna; vou lhe fazer se lembrar de quem és tu...

² - Em latim: Então ouça...


Capitulo 9 - O salto de fé

 


 

“A loucura, de fato, é o começo de todas as coisas essenciais.”

Hermann Hesse

 

   Me lembro com detalhes do dia em que finalmente cheguei no fim do mundo, era magnifico! Após vagar pelo deserto desolado e monótono no escuro, via-me eu, o cavalo e a porta frente a frete da maior complacência que já havia visto em toda a minha existência, infelizmente não consigo mensurar lhes a incumbência da magnitude daquele esplendoroso e suntuoso, repleto de detalhes mórbidos e uma paisagem estonteante de um vazio imensurável; estava eu então no fim do mundo? Senti ali uma soberba de saber infinito, a ostentação de detalhes moribundos a uma concepção de realidade desprezível, me dava naquele finalmente, a sensação de paz que eu buscava durante toda minha simplória vida, eu ali, diante do fim então, compreendi o que a meu ver era inexorável, entendi o sentido da vida.

“Diante daquele magnifico tesouro, que de fato era real, ele riu!”

Eiichiro Oda

   

   Perante a magnificência daquela obra de arte divina, na qual os deus e demônios se juntaram para que em um dia de paz entre a guerra santa entre as dualidade, pudessem então pincelar tamanha obra fastuosa que era “O Escuro”. Sim senhores, senhoritas e entidades presente; o fim do mundo, nada mais é do que a loucura daqueles que se sentem livres e de fato não são, eu em minha incumbência, vendo os vislumbres desnorteantes daquele lugar dotado da absoluta perfeição, ri, gargalhei, chorei e por fim, me joguei!

   Junto da porta, que amarrada em minhas costas como a cruz de cristo, senti-me o mártir de um novo eu, senti-me livre para fazer o que eu quisesse, joguei-me naquele vazio imensurável, atirei-me a um vislumbre de um futuro que eu, enquanto vivo e sem destino escrito, escolhi por livre e espontânea vontade fazer. Dei-me a rir enquanto caia infinitamente por um poço tomado de uma escuridão tão vil, que era incapaz de um ser humano ver sua verdadeira cor; o preto absoluto daquele poço infinito tomou-me o coração assim como um príncipe anseia pelo beijo doce de sua amada princesa. Ressoou-me cores nítidas em minha mente, quatro eram no total; verde, roxo, azul e amarelo, destes o sussurro do complacente dono daquela magnificência de incumbência inimaginável me disse de fato, em latim “Hi sunt quattuor fundamenta” ¹. Eu não precisava entender seu dialeto, as palavras vinham em latim em minha mente, pois esta era a língua mais antiga que eu enquanto vivo, conhecia. Balbuciei e gritei, como louco; notei-me enfim a beira de um colapso psicótico ao ouvir as palavras do ser que rege aquele lugar profano a tudo racional, seu nome ele sussurrava “Magnus, O Escuro”.

   No salto de fé, me desprendendo de toda a concepção de realidade e racionalidade, fiz-me uma alusão em minha mente, do desespero alheio de todos que já vi, ouvi deles, o sussurro da morte; ela me disse um nome “Lilith”; recordo-me de suas palavras doces, tão tênues e calmas que me fizeram ficar completamente apaixonado, louco, estava eu ficando louco? Louco pelo beijo da morte? Estaria eu em um delirium de enfim deparar-me frente a frente com a morte e então finalmente, após aquele beijo, descansaria as minhas pupilas eternamente. Eu estava caindo, caindo em um buraco sem fundo e me recordo de um poema escrever usando como base o desespero frenético que sentira naquela hora.

Da loucura dos homens, enfim estou livre

Ao fundo eu me atirei

Sem pensamentos recorrentes

Estou eu, finalmente livre?

Livre para viver, livre para pensar

Para agir e para sentir

Pois é isso que eu quero mais que tudo

Escolhes parar de sentir

Quero a minha morte alcançar

E então o meu sofrimento sessar!

   Vi-me em um devaneio repleto de loucura, frenesi e medo; a medida que eu ia caindo, fui vendo reflexos de minhas vidas passadas, vi qual era meu destino naquela vida, escutei do Deus do escuro, qual era o sentido da minha vida enquanto humano, mas algo me intrigou. Estaria eu então me despersonificando do meu eu social e então me tornando algo a mais? Estaria eu deixando de ser humano?! Como é essa sensação? Tudo era estranho para mim naquele momento, tudo parecia diferente, o sentimento de catarse era algo bom e alegria algo ruim, vi-me rindo inúmeras vezes e sempre em desespero enquanto caia infinitamente naquele vazio inexorável, virei-me para cima e exclamei “Se alguém nesse lugar lúgubre me ouve eu clamo, tire-me a vida e acabe então com esse sofrimento eterno!”. Algo balbuciou naquele escuro infernal, alguma coisa havia ouvido minha prece, sinto percorrendo pela minha pele um temor difícil de explicar, hoje sei bem quem me chamou, hoje compreendo de fato as coisas que aconteceram naquele dia e posso lhes dizer, para resumir, um proverbio que resumiria minha situação naquele dia “Se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé”.


Capitulo 8 - Eu, uma porta e... O maldito cavalo? Pt. 2

 


 

   Os detalhes da minha mente agora estão já se esvaecendo, recordo-me que por 143 precisos anos eu vaguei pelo deserto e durante 143 anos anotei em meu caderno, uma frase por dia, durante 52.195 dias; dentre elas somente de algumas me recordo, pois daí por diante fui tomado pela loucura enfim.

Hoje, eu, uma porta e um cavalo vagamos por um deserto isolado. Tudo parece monótono e desagradável, felizmente, ou infelizmente, não estou cansado de caminhar.

No escuro ao que tudo indica, este, está de fato. Ao menos, foi que esse ríspido cavalo me disse.

Vejo-me em uma catarse diabolicamente corrosiva, ela me consome e me deixa desolado, recordo-me do pomar de maçãs, das vinheiras e do rosto de minha avó.

Recordo-me hoje, de todos os rostos que olhei em vida, Seranna meu primeiro amor, meu pai sábio e amável, minha... Do que estávamos falando mesmo?

Observo-me esquecendo de fato quem sou, não sei se tenho um rosto ainda, bem, ao menos não vi nenhum espelho neste deserto largo o bastante para eu fazer a barba, isso é, se é que eu tenho uma.

Ando cansado ultimamente, mas mesmo dormindo em pé, meu corpo se recusa a parar, engraçado, nunca havia dormido em pé, será que eu estava dormindo ou só alucinando um sonho vivido enquanto caminhava? O que sonhei mesmo?...

A porta já não pesa, os comentários do cavalo já não absorvo, eu já não existo; sinto-me um só para com a loucura e um só para com o deserto, sou hoje suas areias que banham esse vasto vazio imensurável a mente humana.

Vagando por um deserto com um cavalo sem nome, seu nome já não me lembro mais, meu nome ao menos, ainda me lembro, sou Enoque, filho daquele... Daquele carpinteiro?...

Vultos, inúmeros vultos, acho que vi um homem morto ou um tronco, já não sei mais; dentre as alucinações que observei nos últimos dias, noto um padrão similar ao de um caleidoscópio, mas o que é um caleidoscópio? Como sei o que é isso, sem saber o que é?!

As areais são cinzas e o clima monocromático, sinto-me em um vazio existencial profano, recordo-me de uma frase de um filosofo que li em um livro uma vez “Penso, logo existo”.

Quem é o responsável por tamanha tortura? Por que eu ainda estou andando sem rumo? Qual o sentido disso tudo? Tudo por conta de uma promessa a Garupan, que entregaria essa porta ao Rei Kali no escuro, sou de fato um louco em querer fazer isso!

As vozes, eu estou ouvindo vozes de meu passado, só não sei de quem são... Não me recordo mais de ter um passado, já não sei mais o que pensar além de pensamentos sobre o próprio pensar...

Eu vi um pássaro! Pensei em matá-lo, pensei em poupá-lo, mas não carrego comigo um mosquete. Poderia arremessar eu, essa porta e acertar aquele pássaro?

Hoje percebo que nunca ouve um pássaro, não nesse deserto, não nessa barganha. O cavalo me disse que também viu o pássaro, começo a pensar que ele está ficando maluco.

Noto, que em alguns dias talvez, eu já não me recordarei de mais nada que já vivi, afinal, desde que nasci, sou parte desse deserto...?

O cavalo me contou uma história sobre uma pedra que deslizou, eu ri muito! Ele me disse que a pedra deslizou até não conseguir mais e por fim parou, recomendei ele procurar um médico para tratar sua mente lúgubre e funesta.

Acho engraçado o fato de não sentir sede ou fome, coloquei um pouco de areia na boca e o gosto era bom, afinal, nunca havia colocado nada até hoje em minha boca... Na verdade, me lembro de algo bem molhado que coloquei, não me recordo dos detalhes sortidos, mas sei que havia acompanhado com um sentimento intrigante, algo deveras erótico, algum dia talvez me lembre do seja.

Notei de fato, ontem à noite, que não sei mais onde está minha boca. Isso é, se eu tive uma! Engraçado, não sinto meu corpo mais, tentei olhar para baixo, mas também acho que não tenho mais pescoço ou olhos, não sei...

Pego-me pensando enquanto vago pela imensidão desse vazio absoluto, repleto de areia e uma catarse ressonante que corrói meu amago aos poucos, será que de fato, ao fim da vida, somos loucos o bastante para sermos considerados sábios?

Vi agora a pouco que estou me aproximando de uma arvore morta, da espécie Adansônia digitata ou conhecida popularmente como Baobá, uma arvore comumente conhecida pelos seus troncos largos e suas fortes raízes. Mas espera um pouco, como sei disso? Nunca fui um jardineiro ou algo do tipo.

Há quanto tempo estou vagando por este deserto fúnebre? A todo lado que olho só vejo areias feitas de grãos tão pequenos que mal consigo contar quantos tem nesse deserto, seria loucura, não? Contar a quantidade de grãos tem nesse deserto?!

Pense no seguinte, apaixonei-me por um objeto anômalo, o que é se apaixonar? É querer que aquilo esteja do seu lado e viva com você por toda a eternidade? Ou o simples fato de querer tomar algo bonito, que gostou de fato, para si e somente para si, a todo custo?!

Estou muito feliz, vi pela primeira vez nesse deserto uma grotesca criatura rastejante, similar a uma lesma, a chamei de Joshua em homenagem a... Alguém, ou a algo, não sei, este nome veio como muitos outros em minha mente. O importante é que eu estou feliz!

Joshua ao que tudo indica ficou para trás, nos três seguimos vagando em linha reta rumo ao fim do mundo pelo imensurável deserto, sinto em meu corpo, uma tristeza ressoante que se torna então de fato, pavorosa de mais para se sustentar em meu amago.

Estou com medo, ouvi um sussurro alto durante a noite, mas do que eu estou falando? Devo estar alucinando ou em outra crise psicótica, afinal, aqui sempre é noite, não poderia ter ouvido o sussurro durante o dia, pois em suma, estou eu no Escuro.

Frustrado, com o maldito cavalo que não fala nada. Oh ser desgraçado, ríspido, detestável, maçante, repulsivo, abominável, amaldiçoado, antipático, insuportável, intolerável, odioso, deplorável!

Lembro-me hoje, da aparência grotesca de Joshua, era horrendo! Escaras e feridas expostas, um odor terrível! Jamais ser vivo poderia ser tão repugnantemente podre e exacerbadamente nojento quanto Joshua!

EU VI! Eu vi finalmente o pássaro, não estou alucinando, eu o vi, com meu próprios olhos que creio eu ter, vi um pássaro, com penas negras como o céu daqui (Escuro), com olhos brancos como a luz ressoante daqui (Escuro), com garras afiadas, quero que ele venha me matar!


Capítulo 7 - Eu, uma porta e... O maldito cavalo? Pt. 1

 


   O relato que vos irei lhes contar agora se passa algum tempo depois da execução, recordo-me que fui liberto pela besta horrenda, ou melhor, por bajin; foi após a libertação, pelos caminhos sinuosos daquele lúgubre lugar tedioso e desgastante, que por horas procurei pela porta até que em um vislumbre tênue a vi em uma sala pequena, ao me aproximar, notei de fato algo intrigante; todos os guardas, todas coisas, tudo a minha volta estava parado, era como se o tempo tivesse esquecido de seu dever cívico de realizar suas tratativas naquele domínio fúnebre da prisão. Ao entrar na pequena sala, catei uma corrente e a coloquei em meus braços, me aproximando da porta pensei em abri-la, “tolo, esse presente não é para você!” eu pensei, amarrando-lhe em minhas costas como uma mochila “Deus, aquela porta era pesada, algo a meu ver feito de uma das aroeiras¹ mais ríspidas que o velho devia ter encontrado”. Recordo-me de ter abaixado um pouco as pernas naquele dia, lembro-me de ter ficado um pouco louco por pensar que aquela maldita porta pesada carregava consigo o espírito daquele MALDITO CAVALO! Pois aquele ser infeliz e xucro, dotado de uma falta de caráter tamanha que até o pior dos ladrões possuía maior dignidade, ao ver-lhe em minha frente após colocar a pesada porta em minhas costas, de leve chorei e ri ao mesmo tempo.

   O cavalo continuava a me observar e eu por fim o ultimei “Agora seu tosco cavalo ríspido e ignorante, não tenho mais amarras, posso-lhe matar a hora que eu quiser!”, maldito seja esse cavalo, cuspiu-me a cara e beijou-me, dei-lhe um soco na cara e ali começou uma briga que só viria a terminar no outro dia. Acordei em uma outra sala com a porta escorada no chão, o maldito cavalo deitado no chão (Achei na época que ele estava dormindo) e por fim Bajin me olhando; não me assustei ao vê-lo, mas aquele maldito clima opressivo, a catarse crescente e o som do silencio absoluto me diziam sem palavras onde eu estava, havia sido levado para o escuro. Bajin se levantando formalmente e me cumprimentando educadamente, como de praxe, dizia a mim “Muito boa noite, meu caro Enoque, receio que já tenha conhecido seu guia, este é...”. Este foi um fato cômico, lembro que interrompi Bajin e gritei como um louco “A porcaria de um maldito Equino! Um ser rudimentar e patético como esse não merece nome, Bajin!”, sua expressão após minhas palavras eram singelas, ele então me disse “Então ele agora, se chamara Equino apenas”. Dos detalhes do conceito de nossa conversa naquele momento, se tornaram agora em minha mente, um fardo lúgubre e tênue, não me recordo precisamente dos detalhes, mas sei que Bajin pediu ao cavalo que me acompanhasse até o fim do mundo, seguindo o caminho dentro do Escuro, ele indagou também que se chegássemos lá ainda sãos, poderíamos assim então cumprir o desejo do velho e que ele em pessoa nos levaria até a presença do Rei Sansha Kali, que ficava ao que me recordo no verdadeiro “Escuro”.

   Ao questionar Bajin sobre o que era de fato o “Escuro”, disse-lhe o que pensava ser antes que ele me outorgasse a resposta, com seu semblante apático sem emoção ele educadamente me explicou o que era o “Escuro” em forma de um conto épico.

 

O escuro não foi criado por Deus

O escuro não foi criado pelo Diabo

O escuro nunca foi criado

O escuro sempre existiu

O escuro é o fim de tudo que não é aceito

O escuro é a base de tudo

O escuro não deve ser citado por ninguém

O escuro não é terra de ninguém

O escuro é terra daqueles que possuem o domínio

O escuro foi conquistado

O escuro é lar de muitos

O escuro não tem começo nem fim

O escuro é um lugar maldito

O escuro consome e sucumbe todos que o tocam

O escuro corrompe todos que o veem

O escuro foi moldado com base na vontade daqueles

O escuro é um sinal do fim

O escuro é lar de um dos cavaleiros de Deus

O escuro foi escolhido por Deus como a morada dele

O escuro o rejeitou e o consumiu

O escuro já teve inúmeras formas

O escuro foi nunca foi tocado por Deus ou pelo Diabo

O escuro é lar da morte

O escuro é terra neutra

O escuro pertence a morte agora

O escuro já pertenceu a um rei a muito tempo

O escuro foi lar de Magnus a muito tempo

O escuro existe em todos os lugares

O escuro é o medo primordial da humanidade

 

   Bajin em sua explicação, ao que me recordo, contou-me que antes da criação da terra de tudo que conhecemos como conceito de realidade e existência, o escuro era tudo que existia e em algum momento, naquela época, Deus surgiu em nossa existência trazendo consigo toda a luz para o escuro, mas o escuro não ficou satisfeito com a aparição de Deus na sua existência, ele por sua vez entregou a Deus uma parte da existência, parte esta que Deus criou o universo através de um único estalo. Recordo-me de que Bajin me contou que o escuro viu no planeta terra uma oportunidade perfeita para pela primeira vez tentar se manifestar, viu nos humanos a oportunidade de barganhar. Lembro-me também de ouvir que o escuro nunca mais se manifestou após Lúcifer lhe pedir ajuda para lutar contra Deus, as palavras ditas pelo escuro naquele dia perpetuam no portal que liga o mundo real com esta dimensão oculta, portal esse que fica no fim do mundo

 

Quis es tu qui non est sed creatus” ²

   Dizem que após esta pergunta retorica os acontecimentos bíblicos do anjo caído se sucederam e que após tais acontecimentos o escuro se calou de vez, os anjos caídos que apoiaram Lúcifer e tentaram ver a verdadeira face do escuro foram corrompidos pela escuridão pura e se transformaram em verdadeiras abominações, criaturas estas foram aprisionadas no próprio corpo do escuro, res a lenda que todos aqueles que olham em direção ao escuro veem uma forma diferente, veja tu que lê este manuscrito e diga-me o que viste em sua plenitude:



¹- Aroeira é uma árvore muito comum no brasil, sua madeira é rígida e comumente usada para moveis de maior rigidez como mesas, cadeiras, guarda-roupas e até portas.

²- Em latim: Quem és tu que não existe, mas sim criado?


Capítulo 6 - Infelizmente, não posso deixar...

 


   Enfim me lembro, daquele dia traumático, o dia da minha execução; recordo-me de que o cavalo por algum motivo sumiu naquele dia, mas em vez de minha mente ficar um pouco mais coesa, senti inúmeros sentimentos condensados, uma verdadeira mistura, junção de ódio, tristeza, amor, medo e felicidade ao mesmo tempo. Quando o carrasco viera me buscar para levar-me até a plataforma de execução, recordo-me de pedir-lhe duas coisas, a primeira era que eu gostaria de saber em que ano estávamos, com um olhar um tanto indiferente ele, com a testa enrugada em sinal de estranheza me disse “1745”. Olhei-o com desprezo e cuspindo em seu pé lhe disse “Tolo, tenho apenas agora cerca de 30 anos, não é possível ter se passado 34 anos desde que fui sentenciado a esta maldita pena de morte!”. Ele sem esboçar reação alguma, me puxou pelas correntes que me aprisionavam e me arrastou pelos corredores daquele lugar vil e fétido, ao ser arrastado disse a ele qual seria meu último pedido, recordo-me de seu olhar de desprezo ao ouvir algo tão louco vindo de um simples louco que nem eu; “Quero que me execute ao lado daquela maldita porta vermelha, aquela que o velho deixou para mim, me mate ao lado dela, ao menos na morte verei o que há do outro lado!”. Ele me respondeu com um ar de desprezo questionando-me “E o que eu ganho com isso?”, tolo, lhe mostrei algo irrecusável, um lindo e minúsculo crânio de coelho, ao vê-lo o homem gargalhou. Gargalhei de volta com uma intensidade frenética e com um olhar sério e um sorriso macabro no rosto lhe respondi “Lhe daria a sua vida de volta...”. O homem me bateu com um ferro que havia em mãos, por sorte consegui colocar o crânio do coelho em minha teste bem a tempo de o carrasco bater-me com o ferro rústico e cilíndrico que possuía em mãos, pensei comigo “Talvez isso entre para dentro do meu cérebro e me mate?! Bom, um verdadeiro médico saberia o que pode matar uma pessoa melhor que um assassino!”.

   Após o impacto as coisas começaram a ficar frenéticas, nunca senti tamanha loucura tomando conta de mim, o que era vermelho se tornou amarelo, o que era verde continuou verde, o que era azul agora cortava, e o que era roxo... O que era roxo? Bem, de todo modo, voltemos ao meu relato!

   Depois que o carrasco me acertou, o crânio do coelho se partiu em fragmentos pequenos e estes adentraram em minha cabeça como balas de um mosquete banhado a pólvora negra; recordo me de ter sentido uma dor inexorável naquele momento, caído no chão e agonizando de dor enquanto gritava para ele me matar, vi inúmeras coisas, mas uma em especifico me intrigou deveras, o cavalo estava morto no chão e uma mulher chorava sua morte dizendo “Nosso filho agora nascera e não terá um pai para cuidar lhe, por que matar-te meu único amor, seu preso fétido desgrenhado e infame!”. Droga, até quando estou agonizando de dor o cavalo me enchia!

   Após ver a mulher aos prantos, o carrasco me puxava e me puxava, o sangue formava um caminho no chão e meu corpo ia ficando cada vez mais frio, sentia as dores indo embora aos poucos e minha visão se esvaindo, era uma verdadeira cena de pintura. Andamos por alguns lugares na prisão antes de chegar até a plataforma, por algum motivo meu corpo resolveu não deixar-me na mão até a plataforma (Engraçado, como médico digo que em circunstâncias reais, se um ser humano perdesse aquela quantidade de sangue ele provavelmente entraria em óbito em minutos). O carrasco amarrou-me o pescoço, estava muito claro e eu não conseguia ver a multidão de Sevilla, recordo-me de alguns rostos, como o de meu pai (Ele estava muito velho), não via minha mãe e nem meus avós; acho que àquela altura todos deviam estar mortos, mas porque eu não envelheci?

   Havia um padre a minha esquerda rezando algo, recordo-me que ele me dirigiu a palavra me perguntando se eu tinha alguma “Última consideração”. Obviamente, cuspi-lhe a cara e disse uma dúzia de coisas que deveria ter dito ao velho naquele dia, acho que o velho foi sem sombra de dúvidas, meu único amigo que tive! Disse ao padre.

“Enquanto aquela porta vermelha não for entregue ao Rei Sansha Kali, infelizmente, não posso deixar que me executem! Foi um pedido do meu único amigo, Henrique Garupan!”.

   Ouvi ao certo uma dúzia de suspiros coletivos e múrmuros de surpresa, notei no rosto do padre um pavor imensurável, me lembro de virar em direção ao carrasco pergunta-lhe o que espantava a todos, para que me olhassem com tamanha inquietação e temeridade; o carrasco como de costume, não tirava seu gorro que tampava-lhe o rosto, recordo que nesse dia, esse carrasco em específico tirou o gorro e com um olhar de medo, puxou a alavanca. Vi depois daquilo, um curto episódio do que hoje em dia eles chamam de “filme”, recordo-me sutilmente de todos os detalhes de minha vida, os momentos de prazer com Seranna, os momentos de lazer com meu pai e minha mãe em Veneza, os momentos tristes como a morte do vovô; juro-lhes que de meu rosto uma lagrima veio a escorrer, senti finalmente um sentimento genuíno, senti que naquele momento, queria viver para sempre. Disse em voz alta, antes que minha glote fosse tampada pelo enrijecimento da corda que em meu pescoço estava amarrada; “Quero, a qualquer custo que seja, viver eternamente, se preciso for, barganho contigo, besta horrenda!”.

   Naquele momento, lembro-me de que tudo ao redor parou, não ficou preto como o de costume, o tempo só parou, eu me vi em pé na plataforma novamente, não estava caindo nem nada do tipo, ao olhar para minha direita lá estava, a criatura horrenda, ela estava de pé e olhando fixamente para a multidão, ao virar-me um pouco mais, vi que o padre fora substituído por um marinheiro sem face, era apenas um esqueleto, um maldito esqueleto. Questionei a besta horrenda, “Ouvires minha proposta, ser horrendo?”, como sempre, com estrema educação e calma, ela me disse; “Boa noite Enoque, me chamo Bajin e é um prazer fazer negócios com seres externos”. Lhe respondi “Ora, então eres de tu que o velho mencionara em nossa última conversa?”, sua resposta foi um aceno positivo com a cabeça, perguntei-lhe se haveria alguma possibilidade de ele estar me concedendo o meu desejo, o que pedi antes de morrer; Bajin me respondeu olhando ainda a multidão, sem vira-lhe a cara para mim, disse:

“Ouça Enoque, tenho planos para você, planos formidáveis para você, mas primeiro, tu precisas cumprir o que prometeras ao velho, tu que eres o ser do escuro que barganhaste com ele naquela proposta, não posso interferir ainda, mas posso lhe poupar a vida agora! Afinal, fazemos, de um modo grosseiro de dizer e extremamente indelicado e impreciso. Farinha do mesmo saco, afinal, quando decidiu dar ao velho uma chance, ofereceu-lhe uma barganha, uma barganha com o escuro!”.

   Aquelas palavras me ressoaram a mente, um sorriso involuntário e abrupto surgiu em meu rosto, ao que me recordo. Sutilmente apontei-lhe com meus olhos e expressões a corda que me prendia, ele educadamente se virou e disse “Ah! Mas é claro, com licença!”. Bajin mordeu-me o pescoço, retirando a corda junto de uma porção de minha carne, malditas criaturas inescrupulosas do escuro! Contudo, estava livre, livre para achar aquela porta e levá-la até o Rei Sanhsa Kali, naquela época, mal sabia eu do problema que eu havia me enfiado...


Capítulo 5 - Maldito seja, esse cavalo!

 

   

   Eu não queria me lembrar desses episódios que tive com este maldito cavalo arrogante, mas infelizmente, irei lhes relatar o que aconteceu quando encontrei-me com a droga de um equino grosseiro e rudimentar!

   Após a morte do velho, uma droga de um cavalo surgiu em minha cela, não sei ao certo o motivo; acreditava que eu estava ficando louco nessa época, o cavalo era um ser desagradável, comentava cada movimento meu, me julgava a todo o instante, alguém dispensável de qualquer formaria e um verdadeiro vislumbre do inferno. Lembro-me dele relinchando quando eu estava quase pegando no sono, de seus maldosos comentários e do maldito cheiro do seu cuspe, cavalo desgraçado! Sua voz ecoa em minha mente até os dias de hoje; “Você é alguém tão desprovido de graça, que desonra até o pior do palavreados *ele cuspiu em mim*, ser patético!”. Me enojei de sua aparência, maldito cavalo eu repito, nunca conheci alguém tão desagradável, me recordo de ter pedido os guardas inúmeras vezes para que eles tirassem aquele ser vil de dentro da minha cela, tolos, diziam que eu era louco e que não havia cavalo algum ali dentro, jurei-lhes a minha vida que eu via aquele maldito cavalo, novamente clamo, tolos! Aquele maldito cavalo cuspiu em mim naquele dia, aquele odor acre e pungente, como uma mistura de feno fermentado e saliva envelhecida, Deus, aquilo era horrível.

   Insisti tanto aos guardas que tirassem aquele maldito cavalo que ao fim eles cansaram, me levaram para um casebre que havia entre as muralhas de Sevilla, ao chegar naquele fúnebre casebre (Acho que os guardas estupravam outros guardas dentro daquele local infernal), o cheiro azedo e pestilento daquele fúnebre lugar era de dar nojo; me lembro de ter sido agredido inúmeras vezes naquele lugar e novamente volto-lhes a dizer, maldito seja aquele MALDITO EQUINO! Mas nem Aquele maldito potro que infernizou os meus últimos anos de Sevilla não me deixava em paz, nem na minha maior desgraça. Recordo-me dele rindo e relinchando inúmeras vezes enquanto estava totalmente desprovido de roupas e completamente machucado no chão daquele lugar fúnebre; seus comentários eram desagradáveis “Um ser tão insalubre quanto um rato, não deveria frequentar o mesmo chão que uma barata rasteja, pobre inseto!”, “Você devia se limpar mais, até minhas fezes cheiram melhor que você!”.

   Nem tudo dentro daquele lugar era estranho, lembro-me de quando o velho morreu eles levaram as coisas deles para vários lugares diferentes na masmorra, mas aquela porta vermelha, a que me intrigava tanto, parecia me seguir. Em uma das sessões de tortura que tive, por conta DAQUELE MALDITO CAVALO, me lembro de ter visto a porta encostada em um canto escuro dentro daquela casa fétida e fúnebre de tortura; achei engraçado, pois, nunca havia visto ela ali antes (Já havia ido umas 6 ou 7 vezes para lá). Cogitei me levantar para finalmente ver o que havia atrás dela, mas meu corpo dolorido devido as longas exposições a uma tortura física não sustentavam o peso inerte de meu próprio corpo. Olhei aquela porta e me lembrei do que o velho havia me dito, recordo-me de não ter dito nada sobre seu pedido, nem que faria, nem que não faria; mas algo em mim queria aceitar essa barganha, esse sentimento crescente de dever me intrigava.

   Amanhã era o grande dia, irei ser executado, não via a hora dessa cavalo calar a maldita boca e parar de me encher, esperava que o pelotão de fuzilamento ou o carrasco que puxaria a alavanca que a minha vida seria outorgada, fosse rápido, não queria de modo algum, dar a esse odioso, desagradável, insalubre, fedido, horrendo, insuportável e extremamente desnecessário, maldito cavalo, a oportunidade de rir do meu cadáver após minha morte!


Capítulo 4 - Ao frenesi de um louco carpinteiro

 


   Henrique Garupan, agradeço a este homem por me apresentar ao ofício da marcenaria; enquanto estava preso em uma solitária na cadeia de Sevilla ouvi múrmuros da cela ao lado, eram múrmuros de um homem que sua esperança devasta de um dia construir portas para o Rei da Espanha agora era tomada por lamentos de um assassino de mulheres, um homem sem sentimentos, um estuprador degenerado que viu na morte sua única redenção. Recordo-me de ouvir comentários ríspidos dos guardas a respeito de Garupan, eles indagavam que este homem estava além de condenado a morte, acometido de uma loucura interminável, seu estado mental era deplorável; eu mesmo, ouvi seus lamentos, coisas sem nenhum sentido translucido, sem sentido para aqueles, logico, que o escuro não conheciam. Fiquei na solitária, condenado a morte por cerca de 10 anos; durante este tempo, um som familiar sempre ressoo em minha mente, um retrancar de portas, retrancar esse que vinha das portas que Garupan fazia. Dentre todos os presos o único que possuía um “ofício” lá dentro era Garupan, os guardas a fim de amenizar a dor do carpinteiro louco, deram a ele um apelido intrigante, o chamavam de “Senhor das portas”. Nunca conversamos até a sua última semana de vida, nessa fatídica semana, os guardas que observavam sua situação terminal e vendo que o homem mal conseguiria ir para a plataforma de enforcamento, abriram sua cela e o deixaram ali prostado no chão, deram a ele a sua liberdade, mas o velho, coitado, mal conseguia ficar em pé; naquela noite pela primeira vez, conversamos por uma fresta que havia entre os tijolos, ele me entregou a chave da minha cela e me disse que queria que eu fosse até lá ajuda-lo a cumprir uma última promessa que fez a um antigo rei. Não hesitei em ajudá-lo, afinal, com aquela chave eu poderia escapar e finalmente ser livre daquele lugar, ao menos era isso que eu pensava; ao pegar a chave e abrir a minha cela, lembro que olhei o corredor e vi um guarda dormindo, aquela era minha chance, poderia simplesmente abandonar o velho ali e ir embora, Deus porque não fiz isso!

   Minha consciência pesou como uma ancora em um pequeno navio de madeira atracado em uma pequena encosta de madeira, ao me mover em passos lentos até a cela escura do velho carpinteiro, noite então, ao entrar, seu fascínio pelas tais portas; o velho estava no chão com seu martelo em mãos. Ele tossia e murmurava sons de agonia, em sua cela eu vi, tantas portas que nem me sentia mais em Sevilla, era como se cada uma delas levasse para um lugar no mundo, era como se ali eu realmente fosse livre, a sensação que tive naquele dia foi tão diatópica e ressoante, um sentimento bom dentre a imensidão e solidão da minha apatia crescente, fiquei deveras fascinado com aquelas portas, uma em especifico me intrigou deveras; antes que eu pudesse tocar naquela porta vermelha tão magnifica, algo além de seu tempo, sua maçaneta era dourada e ela possuía um intrigante compartimento para colocar cartas, achei magnífico, nunca havia visto algo de tamanha complexidade em algo tão simples quanto uma porta de madeira. O velho articulava com sua mão já definhada, ao me aproximar um pouco dele observei que o velho estava abismado, com um sorriso frenético em seu rosto, assim como o que tive durante meu delirium no casarão, assustado, me recordo de suas palavras até hoje.

“Agora eu vejo, o que Bajin viu em ti, tu eres então aquele que irá enfim por ao mundo a desordem que ele merece, dê a um velho uma última fagulha de esperança e condene a ele uma vida eterna naquele lugar...”

   Eu sabia em partes o que o velho queria dizer, mas sem entender de fato o que ele estava insinuando; me senti em uma catarse familiar e der repente aquele maldito silêncio, o velho murmurou alegria ao ouvir o silencio abrupto e aquele clima inóspito, a ressonância de ecos das almas perdidas naquele lugar tomaram conta da minha mente, eu conseguia ouvir inúmeros sons, dos mais diversos, entretanto, ao observar a sala notei algo deveras curioso, dentre as portas que haviam, somente uma prevaleceu, a maldita porta vermelha que me chamou tamanha atenção, o velho, se levantando aos poucos se segurando em minha calça rasgada e com um olhar de misericórdia disse a mim mais palavras que carrego comigo.

“Não vá para onde o caminho te leva, vá por onde não há caminho e deixe uma trilha, saiba de uma coisa, o que está atrás de nós e o que está à nossa frente são questões minúsculas comparadas ao que está aqui”.

   O velho logo caiu no chão e grunhindo de dor com o que parecia ter quebrado alguma parte de seu corpo ele rastejava até a porta vermelha, batendo nela seu último prego ele me pediu algo, uma tarefa segundo ele impossível; o velho me pediu para entregar essa porta a um Rei cujo nome eu não conhecia, Rei Sansha Kali, ao questioná-lo sobre a realeza que este reinava, o mesmo riu com desdém e acertou-me a perna com seu martelo, lembro que senti uma dor tangível. O velho puxou-me a gola da camisa rasgada e com um ar de severidade e notória loucura me disse em meio a múrmuros “Barganhaste uma vez, para tu não serás difícil fazer novamente, mas o caminho é árduo e sinuoso, dê a ela a porta que fiz! Peça a ele em troca o que quiser, este é meu último desejo, conceder a alguém um desejo como um verdadeiro gênio da lâmpada!” Me lembro da risada alucinante do velho, frenesi tão abrupto que corroía até o tálamo de meu cérebro, era algo alucinante e extremamente perturbador; eu olhei aquela porta e pensei comigo “Como raios irei partir me daqui desta fortaleza com a droga de uma porta das costas?”. O velho olhando para a entrada escura da cela com pavor dizia coisas como “As almas estão chamando algo, Deus sabe-se lá o que vai atender o chamado, acho melhor deixar-me aqui e ir embora”. Eu novamente não sentia nada, mas algo dentro de mim estava estranho, senti algo, uma histeria de insanidade tão grande que era como uma loucura verdadeira, senti o gosto de uma cor, senti “Amarelo”, algo ressoo em minha mente, algo tão engraçado que eu não consegui parar de rir, era cômico; novamente me perdi de mim, quando vi o velho estava na grade da cela com o martelo preso contra sua maça encefálica, sua mão segurava-lhe o martelo contra sua cabeça, eu abismado com o que havia acontecido, não me recordara dos detalhes sortidos novamente; era como se eu tivesse adormecido por alguns segundos e em piscar de olhos voltado a realidade.

   Eu ouvi um sussurro vindo do corredor, por algum motivo eu ainda não havia saído daquele lugar escuro, aquela realidade diatópica alternativa a nossa, ainda sem sentir nada, medo, remorso ou tristeza. Olhei o corpo do velho estiado em minha frente, observando a porta vermelha de relance algo dentro de mim ressoo um conglomerado de vozes, a porta me chamava e eu estava extremamente curioso para abri-la, ao meu ver naquele momento, ali, com o corpo do velho começando a exaurir um odor terrível de gases e outros dejetos que o corpo dispensa ao morrer, me senti tomado por uma curiosidade crescente, algo inerte dentro de mim que quase me ordenava a ceder meu instinto curioso e abrir a porta, observei nos olhos caído para fora do velho carpinteiro um sentimento de pavor, mas como é possível alguém sentir algo que acabou de “ver”?

   Da porta escura, a maldita besta que me persegue surge, educadamente dizendo ao entrar dentro da cela, desviando-se categoricamente do corpo do velho, em duas patas somente a criatura se apoiava no teto, ela me comprimento “Boa noite, Enoque”; e voltou a sua forma quadrupede, lambendo o córtex frontal do velho que estava como migalhas de pão, jogados no chão, os pedaços iam entrando na boca da besta e ela ia murmurando prazer, como se ela estivesse comendo algo deveras delicioso. Eu não conseguia sentir nada pela criatura, tão pouco era minha vontade de questionar tamanho ato hediondo, a única coisa que eu mais queria era abrir aquela porta, ver o que havia lá dentro. A criatura ao me ver se aproximando da porta, parou abruptamente de ingerir os restos do velho e me disse algo, me lembro que soava como “Não faça isso, essa porta não é sua”, ou algo do tipo, sei que em instantes eu adormeci e quando acordei estava em minha cela acorrentado.


Capítulo 3 - Prazer, pecado!

 


   Este relato que contarei a vocês, foi sem sombra de dúvida um dos mais perturbadores de toda a minha vida. A história que irei lhes contar a seguir se passa no ano de 1711, eu tinha por volta de meus 20 anos de idade e estava indo para minha primeira noite de núpcias com uma filha de um burguês da Transilvânia, dono da maior confraria de vinho do sul da Espanha, a companhia era renomada e conhecida por toda a Europa por fornecer a condes e duques, rei e aristocratas o melhor do vinho espanhol. Naquela noite, eu e Seranna saímos escondidos de uma festa que estava acontecendo no casarão de sua família e fomos as pressas a casa do caseiro da fazenda, Seranna havia me dito que o homem estava fora e que não havia ninguém lá, ela também dizia que sabia exatamente onde ele escondia a chave do casebre pois a janela de seu quarto dava diretamente para a frente da casa do velho homem. Chegando à porta da pequena casa simples, Seranna ainda de mãos dadas a mim (Eu agora um prodígio médico de uma família de médicos renomadas). Recordo-me que meu pai arranjou-me um casamento com a filha de um de seus amigos médicos, ela se chamava Martina, era uma garota meiga e com traços bonitos; mas nada comparado aos olhares profundos daquela burguesa Romena, uma vampira que sugava cada gota de amor e prazer que eu lhe podia ofertar-lhe, eu a amava com tamanha intensidade que até cogitei a possibilidade de largar tudo para viver com ela ao ventos do mar, em um navio pesqueiro, sobrevivendo apenas de peixe e amor.

   Seranna puxou-me os braços e beijou-me, ao empurrar um balde com os pés, ela se abaixou dando-se de costas para mim a fim de pegar a chave que estava no chão, eu que de bobo não tinha nada, puxei-lhe ao meu encontro com tamanha luxuria que minhas mãos contornavam seu corpo enquanto ela de modo proposital se levantava lentamente roçando seu corpo genuinamente atraente no meu, o ar ficava mais pesado a medida que ela ia subindo e eu me sentia ofegante, puxei-lhe o cabelo e trazendo seu pescoço a minha boca a beijei dizendo a ela de modo cômico, da forma que sempre brincávamos “Eu também sei seus artifícios vampira esguia, vou lhe mostrar a estaca de madeira logo, logo...”. Seu sorriso meigo e safado me cativavam, seu olhar sedento e aquele corpo esbelto, seus cabelos curtos pretos e sua postura firme, junto daquele corset decotado que ela havia vestido por baixo do vestido (Ela o havia arrancado fora antes de sairmos do casarão, estava somente de calça, sapato e corset). Aquilo me deixava louco, louco como um navio sem leme em um mar agitado, sentia um fogo que queimava-me toda a razão, era levado pelo veneno doce daquela mulher atraente que eu tanto amava.

   Entrando na casa simples, me lembro de trancar a porta e de termos ido direto para cama, no caminho até lá lembro ter tirando-lhe o corset e tomando-a em meus braços por completo, senti-a com detalhes sortidos que somente um médico ou um homem apaixonado poderia sentir, o aumento da pulsação, a respiração entrecortada e o arrepio na pele quando eu demasiadamente beijava-lhe com intensidade enquanto apertava-lhe à aquelas almofadas macias, meus dedos ligeiros a denegriam a sua imagem forte, uma donzela que agora a gritos de prazer se dizia minha e somente minha; naquela noite, as paredes da casa tremeram e ouviram coisas insalubres, a cama do velho homem, coitado, estava agora no chão com seus pés quebrados, ela ainda ofegante agora deitada em meu busto tentava a todo custo retomar a razão após um coito tão enérgico e repleto do mais puro sentimento de amor e prazer, algo como uma verdadeira utopia de amor. Porém nem tudo naquela noite girava em torno do mar de rosas que era o toque suave de seu ventre em meu rígido corpo; eu sentia aquele sentimento esgueirando nossa noite de núpcias, algo como se alguém, naquele maldito lugar, quisesse falar comigo, por educação ele esperou e se manteve em silencio. Me recordo de Seranna ter abruptamente tirado aquele sentimento de mim por alguns segundos com uma proposta indecente, algo que lhe ofertara a mim que a meu ver era irrecusável, suas palavras eram como um recital de poesia na praça mais linda de Madrid; seu som enérgico em tom de ordem, pedindo-me aquilo, algo tão sujo e que me chamou tanto a atenção em fizeram agir como um animal naquela noite, mas minha mente naquele momento não estava completamente em sintonia com o corpo macio e desprovido de roupas de Seranna, minha mente esta em sintonia com um simples pensamento “O que quer?”. Enquanto meu corpo se movia em movimentos fluidos, como as ondas do oceano se chocando contra uma costa de um continente, uma voz sussurrou do escuro para mim dizendo “Assim que acabar me avise, precisamos conversar...”. Eu lhes serei sincero, a muito minha curiosidade me chamou mais que os prazeres funestos e simplórios da carne humana, mas naquela noite, com aquela proposta indecente de Seranna eu me recusei a dar ouvidos a meus instintos curiosos e me mantive ali com minha amada, durante toda a noite, até que em um vislumbre me lembro de ter caído em um sono profundo devido ao extremo cansaço.

   No dia seguinte me recordo de acordar e ver a cama caída no chão, Seranna estava em uma posição indigna a alguém de sua casta social deitada entre a cama e o chão com suas pernas levantadas, subitamente notei que já era manhã e ouvi o cantar dos galo, em uma duvida mortal me encontrava, ficava um pouco mais com minha amada ali naquela casa ou a acordava para irmos embora antes que os aristocratas levantem com ressaca da grande festa e comecem a notar a nossa ausência, sentindo os feromônios pulsarem de meu corpo acabei cedendo a um instinto animal e puxando Sernna para meu encontro, ela acordou ligeiramente assustada mas não parecia incomodada com a ideia, por algumas horas aproveitamos a presença um do outro e saciando o resto de desejo e vontade que tínhamos remanescentes em nossos corpos ficamos ali. Quando o sol batera na janela do quarto rapidamente nos vestimos e saímos as pressas da casa do velho homem; algo estava errado, eu sabia que estava esquecendo de algo e assim que toquei a maçaneta da porta para sairmos daquele casebre, aquele maldito silencio, tudo ficou escuro, já não havia mais som algum além da nossa respiração, senti Seranna me agarrar com força e me recordo precisamente de suas palavras “Amor, o que está acontecendo?”. Quando me virei para sua direção vi aquela silhueta vil novamente, a criatura quadrupede estava deitada na cama, eu puxei Seranna para minhas costas e a disse “Haja o que houver, não saia de perto de mim”. A criatura articulava com seu dedo necrosado em sinal de negação, balançando seu indicador de um lado para o outro, lembro de suas palavras ecoando em minha mente enquanto eu abraçava firmemente Seranna em meus braços, a criatura me disse em tom de descontentamento “Não podemos permitir que você seja feliz ou triste, devemos salientar que o que fizera na ultima noite com o receptáculo dessa alma não se repetira, devido a ultima barganha, seu contrato foi selado e agora, vós és um com o escuro, saiba de seu lugar Enoque.”. Novamente dos detalhes sortidos daquele dia eu não me recordo, mas lembro de flashes, terríveis flashes que me amedrontam até os dias de hoje, lembro-me de Seranna em meus braços enquanto eu chorava, o salão do casarão de sua família estava todo tingido de sangue, ela estava com um olhar frio e já não se mexia mais, no centro daquele casarão uma pilha de corpos dava lugar a criatura que sentada em cima dos cadáveres olhava em minha direção, eu que sem conseguir sentir nada naquele momento, nem raiva, nem tristeza, nada, olhava para os olhos mortos da minha amada, agora sem vida em meus braços. Tomado por uma loucura profana e infame, me vi perdido em um frenesi amaldiçoado, uma psicose irrefreável na qual eu não me recordo de nada, não senti nada naquele dia, mas só naquele dia...

   Os detalhes posteriores a esse dia ser tornaram sombrio, me recordo dos militares chegando e me levando para a prisão de Sevilla que ficava ao noroeste da minha cidade natal, dos detalhes cinzentos, macabros e sinistros que eu ouvira dos presos sobre meus atos profanos eu me recordo de um deles somente, que eu em minha incumbência, tirei a vida de quem eu mais amava com um sorriso no rosto e gargalhando sem parar, ouvi isso da boca de um preso enquanto os guardas me conduziam para a solitária; naquele dia fui condenado a morte.


Capítulo 2 -Oh, besta horrenda

 


   Eu e meus pais morávamos em uma cidade litorânea ao sul da Espanha chamada Málaga; meu pai era um médico renomado e minha mãe filha de um aristocrata, em suma, nossa realidade financeira era diferente dos demais naquele período devido a nossa influência na cidade; morávamos em um casarão bem localizado as margens do mar, uma casa de requinte e firulas notórios dos burgueses da época. Eu era filho único de uma família cercada de dotes e etiquetas, fui educado quando mais novo por um professor particular que ia em minha casa me ensinar as matérias e meu pai aos fins de semana, me apresentava aos poucos o ofício da medicina, através de seus livros. Me lembre sordidamente de um episodio quando tinha apenas 16 anos, já estava cansado de ser tutelado em casa por um professor e insisti a meu pai que me colocasse em um colégio para eu conviver mais com pessoas da minha idade, ao contrário delas, eu era mais miúdo e esbelto, meus olhares e feições eram imaturas e frágil; meu pai que nunca me negava nada (Ele era mais presente em casa que minha própria mãe) não questionou e me matriculou na melhor academia da cidade, o questionei se não seria melhor ir para Madrid e ele me disse que queria a todo custo que eu ficasse perto dele, pois ele é quem iria me ensinar a exercer o oficio da medicina (era seu único desejo, que eu me torna-se medico como ele). Quando entrei para o colégio com 16 anos me senti um pouco deslocado, as pessoas eram ao meu ver, similares aos amigos do meu pai; não faziam amizades sem ganhar nada em troca, tudo girava em torno da influência, a demasiada notória ascensão dos pequenos novos burgueses, como eu chamava aqueles tolos, era de longe cômica; me lembro de uma vez sozinho, dar uma gargalhada daqueles  que se viam na alta sociedade como a única fonte de sustento a vida glamurosa e repleta de firulas e coisas supérfluas que de fato não precisavam. Me lembro que um dos jovens naquele dia, implicara comigo a tão ponto de querer me agredir, seu nome era Pedro de Albuquerque, um português metido que achava que sabia espanhol melhor que nos mesmos; tolo, seu espanhol era terrível e sua personalidade pior ainda. Ao fim da aula ele e outros me levaram para um casebre que havia atrás da escola a força e me penduraram em correntes lá (eles me bateram muito naquele dia); após horas de agressão, pendurado naquelas correntes, eu que era um rapaz diferente dos demais, me mantive em silencio. Recordo-me de que Pedro de Albuquerque havia levantado minha cabeça e questionado algo a mim, porém agora os detalhes daquela conversa se tornaram nebulosos em minha mente vil; assim que ele me questionou, cuspi sangue em sua cara e com um sorriso no rosto eu disse algo supérfluo e sem muita relevância.

   Os garotos acabaram me deixando pendurado ali durante a noite, era lua minguante e fazia frio; depois de algumas horas clamando socorro afim de alguém me responder, eu ouvi, eu ouvi aquele maldito silencio que ouvira naquele fatídico dia no deposito da vovó, o silencio ensurdecedor; nas poucas janelas que haviam no casebre lá fora só conseguia ver um tom de preto tão intenso que parecia como um lingote de ébano recém moldado. O único som que eu ouvia dentro daquele casebre naquele momento era o tilintar metálico das correntes que mexiam à medida que eu me movia e além da minha respiração ofegante, o gotejar de sangue que pingava do meu rosto formando uma pequena poça naquele grotesco chão sujo. Da porta do casebre, ouvi um barulho, um som estranho, uma espécie de ronco ou grunhido trêmulo que ressoava como um ranger rápido de dentes, como se eles batessem entre si rapidamente e logo parassem, da porta sombra da porta vi uma silhueta fungando as frestas, por algum motivo eu não sentia medo algum, na verdade eu não sentia nada mais, meu corpo, minha mente, nada mais. A criatura batia com a cabeça devagar na porta, eu que por algum motivo senti uma vontade incontrolável de rir alto; dei inúmeras gargalhadas ao ver a criatura roçando a porta com sua cabeça, eu não conseguia a ver é claro. Em alguns instantes a criatura se levantou e ficando ereta ela abriu a porta como um humano, por mais que eu não estivesse sentindo nada naquele momento, meu organismo estava em luta ou fuga instintivamente, meu rosto era esbanjado por um sorriso enaltecido em loucura, acho que eu estava começando a me enlouquecer naquela época. A medida que a maçaneta ia girando eu ia ficando mais ofegante e sorria mais e mais, aquilo nem de longe passava pelo espectro da logica mas eu achava por algum motivo, tudo aquilo muito engraçado; logo eu vi, com meus olhos eu vi a criatura. “Oh ser repugnante e abruptamente horrendo e maldito” eu pensei quando a vi, mas o que viria seguido de meu encontro com aquele ser me exauriu a alma profundamente; a criatura categoricamente ainda ereta, com uma voz calma, tênue e reconfortante disse “Boa noite, Enoque”. Meus olhos naquele momento encheram-se de pavor, mas eu não conseguia parar de rir ao ver aquele ser rudimentar e grotesco, sua aparência era tão horrenda que eu vomitei ao ver sua carne podre e seu cheiro putrefato. A criatura, de aspecto quadrúpede, exibia uma morfologia esguia e longilíneas. Suas patas dianteiras, mais curtas, ostentam dedos alongados e ossudos, enquanto as traseiras, mais robustas, parecem propícias ao salto e à corrida. A cabeça desproporcional, dominada por uma mandíbula saliente e repleta de dentes afiados, sugeriam uma natureza predatória, realçada pelos olhos pequenos e penetrantes. A pele, translúcida, pálida e podre, estica-se sobre os ossos visíveis, revelando uma aparência cadavérica, acentuada por tufos esparsos de pelo. Sua expressão ameaçadora, com a boca gotejante e um aspecto visível de fome e insaciedade aquele ser me olhava enquanto eu dava inúmeras gargalhadas em um estado de frenesi imensurável.

   Voltando a um aspecto quadrupede, a criatura me olhava com repulsa, dizia em voz baixa, voz essa que era totalmente dissonante ao seu espetro visual “Se alguém deveria ter repulsa, medo ou apatia por alguém nesse casebre, esse alguém deveria ser eu, Enoque”. Eu gargalhava e gargalhava e logo vi meus lábios mexerem sozinhos, parecia que não era eu quem estava falando naquele momento quando disse “Isso é tão engraçado, eu não estou aguentando de tanto rir”. A criatura se assusta um pouco e se retrai como um cão solitário sendo enxotado de um restaurante, ela então diz para mim em um tom ameaçador “Fratricida, diga-me um motivo apenas para não lhe arrancar-lhe a vida aqui e agora!”. Quando me vi de volta a sanidade, decai-me a chorar e implorar pela minha vida e novamente a criatura se assustara com minhas expressões, me lembro de implorar a ela três ou quatro vezes enquanto ela me rodeava, preso naquelas correntes. Eu então tive uma ideia, ofertei-lhe uma barganha irrecusável, quatro almas, quatro pessoas, quatro valentões por minha vida, a criatura parecia interessada e me questionou ao que me recordo algo como “Sabes que barganhar com o escuro é um dos pecados mais hediondos que seu povo pode cometer, não sabes Enoque?”.

   Ao certo não me recordo dos detalhes de como fui embora ou como foi o desfecho daquela noite, a lembrança vaga e nebulosa que tenho em minha mente, contada em flash, retalhos de uma memória agora perdida eu vos digo, ao chegar em casa meu pai e minha mãe me questionaram e me trataram dos meus ferimentos abertos. No dia seguinte me lembro de ir para o colégio com um pequeno crânio de coelho no bolso e a última lembrança que tenho é de empurrar Pedro de Albuquerque e seus amigos quando estávamos indo embora e correr rapidamente rumo ao casebre. Ao entrar me escondi atrás da porta e aguardei a chegada abrupta dos valentões, como era de se esperar os quatro imbecis entraram como touros em um colisão a espera de seu matador, logo fechei a porta e ao jogar o crânio de coelho no chão o quebrei pisando-lhe com robusta força e precisão. O clima do casebre voltara a ser escuro e silencioso e de volta aquele lugar maldito eu estava, no centro do casebre, como no dia que fiquei pendurado, lá estava a criatura, prostada em quatro patas. Os valentões não a viram, pois, tolos como eram, só tinham olhos para mim e sua maldita ira; logo eles ouviram aquele ranger de dentes e caídos aos meus pés clamando misericórdia a criatura ele gritavam como crianças. A que me lembro a criatura disse algo a mim antes de devorá-los da forma mais grotesca, brutal e desumana que já vi, ela sussurrou algo como “Do pó ao pó, do começo ao fim, do certo ao errado, seja bem vindo a neutralidade, Enoque, seja bem vindo, ao Escuro”.


Capítulo 1 - Múrmuros

 


   Quando era pequeno, me falavam que temer o escuro era bobagem, tolos, mal sabiam eles da incumbência de tamanho ato de blasfêmia! Quando tinha meus 8 anos de idade, me recordo sutilmente de estar em uma noite sortida de verão na casa de minha avó em Granada na Espanha; o ano era 1699, os grilos recitavam suas músicas ao luar e eu me lembro como se fosse ontem, sentado naquela janela de carvalho seco, observando o Alhambra¹ de longe, minha avó estava no andar de baixo da casa preparando uma panelada de Spaghetti, o cheiro era intrínseco, vovó era de família italiana e nunca abria mão da tradição, diferente de tudo que já sentira antes; ao saltar da janela rumo a parreira de uvas e escorregando por uma corda que havia em beirada logo cheguei ao alpendre onde estavam meus familiares. Naquela noite algo estava estranho, uma sensação ressoava por minha pele e minha alma, eu me sentia mal, cabisbaixo, triste e deprimido. Logo eu o agitado Enoque cabisbaixo, era obvio que alguém iria notar que havia algo de errado comigo, minha mãe logo me perguntou se eu estava passando mal ou algo do tipo, e ligeiro como sempre escapei de suas perguntas derrubando alguma coisa para que me chamassem a atenção, nunca gostei de falar muito de mim. Ao fugir de minha mãe entrei rapidamente no deposito que havia ao fundo da cozinha, ao entrar fazia como de praxe, empurrava um ou dois sacos de arroz contra a porta fechada (Eu não tinha altura para tranca-la), me escondia embaixo da prateleira e colocava algumas caixas me tampando para que não me achassem; mas naquele dia, naquele fatídico dia, quando resolvi fechar meus olhos para me esconder de minha mãe, notei algo de errado quando os abri novamente; a sensação térmica, física e auditiva do lugar era a mesma, mas algo estava estranho, era como se espiritualmente estivesse diferente, o peso do ar, minha mente, tudo estava ressoando em ecos; no silencio daquele pequeno armazém eu só escutava um som e não era o da minha mãe, era da minha própria respiração e batimentos.

   Saindo de trás da caixa, chamei por minha mãe uma ou duas vezes, não me lembro ao certo, mas o que me lembro em suma, foi a resposta que ouvi de trás da porta; um som de desespero, algumas vozes arrastadas, tremulas e sofridas, diziam para mim coisas como “A vovó nunca vai voltar, entre dentro da cela e se torne uma sombra da vovó, ela está aqui, não ela não está”. As vozes se contradiziam, eu estava prostado de medo, e questionava a elas a todo momento coisas como “Quem são vocês, quero ir embora para casa”; elas nunca me respondiam, pareciam não me ouvir, isso até eu tocar na porta. Assim que encostei minhas mãos na porta, ela ressoo um som de retranca, algo que já havia ouvido antes vindo da porta do escritório do papai; o som ecoo com muito eco, eu então a abri e vi um vulto correr em direção a um lugar muito escuro, não havia nenhuma fonte de iluminação ali, nenhum sol, quando abri aquela porta não vi a casa de minha avó, vi somente um lugar escuro, sem luz, sem vida, sem morte, sem esperança e sem desespero. Senti pela primeira vez aquela sensação, era como se uma catarse imensurável tomasse conta de mim, todos os sentimentos bons e ruins sumiram, só o desamparo restava, nem medo eu senti quando olhei para o escuro; era como se eu não estivesse sentindo nada...

   Corri para de baixo da prateleira novamente e jogando as caixas para longe notei-me em um estado de frenesi crescente, como se cada segundo que passasse ali fosse contado de forma decrescente, como se minha vida, sanidade e minha própria alma fosse tendo seu tempo drenado; fechei-me os olhos novamente e pedi para ir embora. Ao abrir meus olhos, aquela sensação ressoante se esvaiu e da porta minha mãe entra, esbravejando comigo enquanto de meus olhos um rio de lagrimas descia. Daquele dia em diante, nunca mais dormi com as luzes apagas, era eu um tolo por temer o escuro?

 

¹ - A Alhambra, localizada em Granada, Espanha, é um complexo de palácios, fortalezas e jardins que data do século XIII. Construída durante o reinado dos Nasridas, a última dinastia muçulmana da Península Ibérica.


Capitulo 0 - Introdução

 


Capitulo 10 - Tudo e nada, a concepção da loucura frenética

    "A única diferença entre um louco e eu é que eu não sou louco." Salvador Dali      Como em um sonho me vi caindo infin...