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18 setembro 2024

Capítulo 2 -Oh, besta horrenda

 


   Eu e meus pais morávamos em uma cidade litorânea ao sul da Espanha chamada Málaga; meu pai era um médico renomado e minha mãe filha de um aristocrata, em suma, nossa realidade financeira era diferente dos demais naquele período devido a nossa influência na cidade; morávamos em um casarão bem localizado as margens do mar, uma casa de requinte e firulas notórios dos burgueses da época. Eu era filho único de uma família cercada de dotes e etiquetas, fui educado quando mais novo por um professor particular que ia em minha casa me ensinar as matérias e meu pai aos fins de semana, me apresentava aos poucos o ofício da medicina, através de seus livros. Me lembre sordidamente de um episodio quando tinha apenas 16 anos, já estava cansado de ser tutelado em casa por um professor e insisti a meu pai que me colocasse em um colégio para eu conviver mais com pessoas da minha idade, ao contrário delas, eu era mais miúdo e esbelto, meus olhares e feições eram imaturas e frágil; meu pai que nunca me negava nada (Ele era mais presente em casa que minha própria mãe) não questionou e me matriculou na melhor academia da cidade, o questionei se não seria melhor ir para Madrid e ele me disse que queria a todo custo que eu ficasse perto dele, pois ele é quem iria me ensinar a exercer o oficio da medicina (era seu único desejo, que eu me torna-se medico como ele). Quando entrei para o colégio com 16 anos me senti um pouco deslocado, as pessoas eram ao meu ver, similares aos amigos do meu pai; não faziam amizades sem ganhar nada em troca, tudo girava em torno da influência, a demasiada notória ascensão dos pequenos novos burgueses, como eu chamava aqueles tolos, era de longe cômica; me lembro de uma vez sozinho, dar uma gargalhada daqueles  que se viam na alta sociedade como a única fonte de sustento a vida glamurosa e repleta de firulas e coisas supérfluas que de fato não precisavam. Me lembro que um dos jovens naquele dia, implicara comigo a tão ponto de querer me agredir, seu nome era Pedro de Albuquerque, um português metido que achava que sabia espanhol melhor que nos mesmos; tolo, seu espanhol era terrível e sua personalidade pior ainda. Ao fim da aula ele e outros me levaram para um casebre que havia atrás da escola a força e me penduraram em correntes lá (eles me bateram muito naquele dia); após horas de agressão, pendurado naquelas correntes, eu que era um rapaz diferente dos demais, me mantive em silencio. Recordo-me de que Pedro de Albuquerque havia levantado minha cabeça e questionado algo a mim, porém agora os detalhes daquela conversa se tornaram nebulosos em minha mente vil; assim que ele me questionou, cuspi sangue em sua cara e com um sorriso no rosto eu disse algo supérfluo e sem muita relevância.

   Os garotos acabaram me deixando pendurado ali durante a noite, era lua minguante e fazia frio; depois de algumas horas clamando socorro afim de alguém me responder, eu ouvi, eu ouvi aquele maldito silencio que ouvira naquele fatídico dia no deposito da vovó, o silencio ensurdecedor; nas poucas janelas que haviam no casebre lá fora só conseguia ver um tom de preto tão intenso que parecia como um lingote de ébano recém moldado. O único som que eu ouvia dentro daquele casebre naquele momento era o tilintar metálico das correntes que mexiam à medida que eu me movia e além da minha respiração ofegante, o gotejar de sangue que pingava do meu rosto formando uma pequena poça naquele grotesco chão sujo. Da porta do casebre, ouvi um barulho, um som estranho, uma espécie de ronco ou grunhido trêmulo que ressoava como um ranger rápido de dentes, como se eles batessem entre si rapidamente e logo parassem, da porta sombra da porta vi uma silhueta fungando as frestas, por algum motivo eu não sentia medo algum, na verdade eu não sentia nada mais, meu corpo, minha mente, nada mais. A criatura batia com a cabeça devagar na porta, eu que por algum motivo senti uma vontade incontrolável de rir alto; dei inúmeras gargalhadas ao ver a criatura roçando a porta com sua cabeça, eu não conseguia a ver é claro. Em alguns instantes a criatura se levantou e ficando ereta ela abriu a porta como um humano, por mais que eu não estivesse sentindo nada naquele momento, meu organismo estava em luta ou fuga instintivamente, meu rosto era esbanjado por um sorriso enaltecido em loucura, acho que eu estava começando a me enlouquecer naquela época. A medida que a maçaneta ia girando eu ia ficando mais ofegante e sorria mais e mais, aquilo nem de longe passava pelo espectro da logica mas eu achava por algum motivo, tudo aquilo muito engraçado; logo eu vi, com meus olhos eu vi a criatura. “Oh ser repugnante e abruptamente horrendo e maldito” eu pensei quando a vi, mas o que viria seguido de meu encontro com aquele ser me exauriu a alma profundamente; a criatura categoricamente ainda ereta, com uma voz calma, tênue e reconfortante disse “Boa noite, Enoque”. Meus olhos naquele momento encheram-se de pavor, mas eu não conseguia parar de rir ao ver aquele ser rudimentar e grotesco, sua aparência era tão horrenda que eu vomitei ao ver sua carne podre e seu cheiro putrefato. A criatura, de aspecto quadrúpede, exibia uma morfologia esguia e longilíneas. Suas patas dianteiras, mais curtas, ostentam dedos alongados e ossudos, enquanto as traseiras, mais robustas, parecem propícias ao salto e à corrida. A cabeça desproporcional, dominada por uma mandíbula saliente e repleta de dentes afiados, sugeriam uma natureza predatória, realçada pelos olhos pequenos e penetrantes. A pele, translúcida, pálida e podre, estica-se sobre os ossos visíveis, revelando uma aparência cadavérica, acentuada por tufos esparsos de pelo. Sua expressão ameaçadora, com a boca gotejante e um aspecto visível de fome e insaciedade aquele ser me olhava enquanto eu dava inúmeras gargalhadas em um estado de frenesi imensurável.

   Voltando a um aspecto quadrupede, a criatura me olhava com repulsa, dizia em voz baixa, voz essa que era totalmente dissonante ao seu espetro visual “Se alguém deveria ter repulsa, medo ou apatia por alguém nesse casebre, esse alguém deveria ser eu, Enoque”. Eu gargalhava e gargalhava e logo vi meus lábios mexerem sozinhos, parecia que não era eu quem estava falando naquele momento quando disse “Isso é tão engraçado, eu não estou aguentando de tanto rir”. A criatura se assusta um pouco e se retrai como um cão solitário sendo enxotado de um restaurante, ela então diz para mim em um tom ameaçador “Fratricida, diga-me um motivo apenas para não lhe arrancar-lhe a vida aqui e agora!”. Quando me vi de volta a sanidade, decai-me a chorar e implorar pela minha vida e novamente a criatura se assustara com minhas expressões, me lembro de implorar a ela três ou quatro vezes enquanto ela me rodeava, preso naquelas correntes. Eu então tive uma ideia, ofertei-lhe uma barganha irrecusável, quatro almas, quatro pessoas, quatro valentões por minha vida, a criatura parecia interessada e me questionou ao que me recordo algo como “Sabes que barganhar com o escuro é um dos pecados mais hediondos que seu povo pode cometer, não sabes Enoque?”.

   Ao certo não me recordo dos detalhes de como fui embora ou como foi o desfecho daquela noite, a lembrança vaga e nebulosa que tenho em minha mente, contada em flash, retalhos de uma memória agora perdida eu vos digo, ao chegar em casa meu pai e minha mãe me questionaram e me trataram dos meus ferimentos abertos. No dia seguinte me lembro de ir para o colégio com um pequeno crânio de coelho no bolso e a última lembrança que tenho é de empurrar Pedro de Albuquerque e seus amigos quando estávamos indo embora e correr rapidamente rumo ao casebre. Ao entrar me escondi atrás da porta e aguardei a chegada abrupta dos valentões, como era de se esperar os quatro imbecis entraram como touros em um colisão a espera de seu matador, logo fechei a porta e ao jogar o crânio de coelho no chão o quebrei pisando-lhe com robusta força e precisão. O clima do casebre voltara a ser escuro e silencioso e de volta aquele lugar maldito eu estava, no centro do casebre, como no dia que fiquei pendurado, lá estava a criatura, prostada em quatro patas. Os valentões não a viram, pois, tolos como eram, só tinham olhos para mim e sua maldita ira; logo eles ouviram aquele ranger de dentes e caídos aos meus pés clamando misericórdia a criatura ele gritavam como crianças. A que me lembro a criatura disse algo a mim antes de devorá-los da forma mais grotesca, brutal e desumana que já vi, ela sussurrou algo como “Do pó ao pó, do começo ao fim, do certo ao errado, seja bem vindo a neutralidade, Enoque, seja bem vindo, ao Escuro”.


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