Enfim me
lembro, daquele dia traumático, o dia da minha execução; recordo-me de que o
cavalo por algum motivo sumiu naquele dia, mas em vez de minha mente ficar um
pouco mais coesa, senti inúmeros sentimentos condensados, uma verdadeira
mistura, junção de ódio, tristeza, amor, medo e felicidade ao mesmo tempo.
Quando o carrasco viera me buscar para levar-me até a plataforma de execução,
recordo-me de pedir-lhe duas coisas, a primeira era que eu gostaria de saber em
que ano estávamos, com um olhar um tanto indiferente ele, com a testa enrugada
em sinal de estranheza me disse “1745”. Olhei-o com desprezo e cuspindo em seu
pé lhe disse “Tolo, tenho apenas agora cerca de 30 anos, não é possível ter se
passado 34 anos desde que fui sentenciado a esta maldita pena de morte!”. Ele
sem esboçar reação alguma, me puxou pelas correntes que me aprisionavam e me
arrastou pelos corredores daquele lugar vil e fétido, ao ser arrastado disse a
ele qual seria meu último pedido, recordo-me de seu olhar de desprezo ao ouvir
algo tão louco vindo de um simples louco que nem eu; “Quero que me execute ao
lado daquela maldita porta vermelha, aquela que o velho deixou para mim, me
mate ao lado dela, ao menos na morte verei o que há do outro lado!”. Ele me
respondeu com um ar de desprezo questionando-me “E o que eu ganho com isso?”,
tolo, lhe mostrei algo irrecusável, um lindo e minúsculo crânio de coelho, ao
vê-lo o homem gargalhou. Gargalhei de volta com uma intensidade frenética e com
um olhar sério e um sorriso macabro no rosto lhe respondi “Lhe daria a sua vida
de volta...”. O homem me bateu com um ferro que havia em mãos, por sorte
consegui colocar o crânio do coelho em minha teste bem a tempo de o carrasco
bater-me com o ferro rústico e cilíndrico que possuía em mãos, pensei comigo
“Talvez isso entre para dentro do meu cérebro e me mate?! Bom, um verdadeiro
médico saberia o que pode matar uma pessoa melhor que um assassino!”.
Após o
impacto as coisas começaram a ficar frenéticas, nunca senti tamanha loucura
tomando conta de mim, o que era vermelho se tornou amarelo, o que era verde
continuou verde, o que era azul agora cortava, e o que era roxo... O que era
roxo? Bem, de todo modo, voltemos ao meu relato!
Depois que o
carrasco me acertou, o crânio do coelho se partiu em fragmentos pequenos e
estes adentraram em minha cabeça como balas de um mosquete banhado a pólvora
negra; recordo me de ter sentido uma dor inexorável naquele momento, caído no
chão e agonizando de dor enquanto gritava para ele me matar, vi inúmeras
coisas, mas uma em especifico me intrigou deveras, o cavalo estava morto no
chão e uma mulher chorava sua morte dizendo “Nosso filho agora nascera e não
terá um pai para cuidar lhe, por que matar-te meu único amor, seu preso fétido
desgrenhado e infame!”. Droga, até quando estou agonizando de dor o cavalo me
enchia!
Após ver a
mulher aos prantos, o carrasco me puxava e me puxava, o sangue formava um
caminho no chão e meu corpo ia ficando cada vez mais frio, sentia as dores indo
embora aos poucos e minha visão se esvaindo, era uma verdadeira cena de
pintura. Andamos por alguns lugares na prisão antes de chegar até a plataforma,
por algum motivo meu corpo resolveu não deixar-me na mão até a plataforma (Engraçado,
como médico digo que em circunstâncias reais, se um ser humano perdesse aquela
quantidade de sangue ele provavelmente entraria em óbito em minutos). O
carrasco amarrou-me o pescoço, estava muito claro e eu não conseguia ver a
multidão de Sevilla, recordo-me de alguns rostos, como o de meu pai (Ele estava
muito velho), não via minha mãe e nem meus avós; acho que àquela altura todos
deviam estar mortos, mas porque eu não envelheci?
Havia um
padre a minha esquerda rezando algo, recordo-me que ele me dirigiu a palavra me
perguntando se eu tinha alguma “Última consideração”. Obviamente, cuspi-lhe a
cara e disse uma dúzia de coisas que deveria ter dito ao velho naquele dia,
acho que o velho foi sem sombra de dúvidas, meu único amigo que tive! Disse ao
padre.
“Enquanto
aquela porta vermelha não for entregue ao Rei Sansha Kali, infelizmente, não
posso deixar que me executem! Foi um pedido do meu único amigo, Henrique
Garupan!”.
Ouvi ao
certo uma dúzia de suspiros coletivos e múrmuros de surpresa, notei no rosto do
padre um pavor imensurável, me lembro de virar em direção ao carrasco pergunta-lhe
o que espantava a todos, para que me olhassem com tamanha inquietação e
temeridade; o carrasco como de costume, não tirava seu gorro que tampava-lhe o
rosto, recordo que nesse dia, esse carrasco em específico tirou o gorro e com
um olhar de medo, puxou a alavanca. Vi depois daquilo, um curto episódio do que
hoje em dia eles chamam de “filme”, recordo-me sutilmente de todos os detalhes
de minha vida, os momentos de prazer com Seranna, os momentos de lazer com meu
pai e minha mãe em Veneza, os momentos tristes como a morte do vovô; juro-lhes
que de meu rosto uma lagrima veio a escorrer, senti finalmente um sentimento
genuíno, senti que naquele momento, queria viver para sempre. Disse em voz
alta, antes que minha glote fosse tampada pelo enrijecimento da corda que em
meu pescoço estava amarrada; “Quero, a qualquer custo que seja, viver eternamente,
se preciso for, barganho contigo, besta horrenda!”.
Naquele
momento, lembro-me de que tudo ao redor parou, não ficou preto como o de
costume, o tempo só parou, eu me vi em pé na plataforma novamente, não estava
caindo nem nada do tipo, ao olhar para minha direita lá estava, a criatura
horrenda, ela estava de pé e olhando fixamente para a multidão, ao virar-me um
pouco mais, vi que o padre fora substituído por um marinheiro sem face, era
apenas um esqueleto, um maldito esqueleto. Questionei a besta horrenda,
“Ouvires minha proposta, ser horrendo?”, como sempre, com estrema educação e
calma, ela me disse; “Boa noite Enoque, me chamo Bajin e é um prazer fazer
negócios com seres externos”. Lhe respondi “Ora, então eres de tu que o velho
mencionara em nossa última conversa?”, sua resposta foi um aceno positivo com a
cabeça, perguntei-lhe se haveria alguma possibilidade de ele estar me
concedendo o meu desejo, o que pedi antes de morrer; Bajin me respondeu olhando
ainda a multidão, sem vira-lhe a cara para mim, disse:
“Ouça
Enoque, tenho planos para você, planos formidáveis para você, mas primeiro, tu
precisas cumprir o que prometeras ao velho, tu que eres o ser do escuro que
barganhaste com ele naquela proposta, não posso interferir ainda, mas posso lhe
poupar a vida agora! Afinal, fazemos, de um modo grosseiro de dizer e
extremamente indelicado e impreciso. Farinha do mesmo saco, afinal, quando
decidiu dar ao velho uma chance, ofereceu-lhe uma barganha, uma barganha com o
escuro!”.
Aquelas
palavras me ressoaram a mente, um sorriso involuntário e abrupto surgiu em meu
rosto, ao que me recordo. Sutilmente apontei-lhe com meus olhos e expressões a
corda que me prendia, ele educadamente se virou e disse “Ah! Mas é claro, com
licença!”. Bajin mordeu-me o pescoço, retirando a corda junto de uma porção de
minha carne, malditas criaturas inescrupulosas do escuro! Contudo, estava
livre, livre para achar aquela porta e levá-la até o Rei Sanhsa Kali, naquela
época, mal sabia eu do problema que eu havia me enfiado...
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